DE NOITE TODOS OS GATOS
SÃO PARDOS
Priscila Fernandes
Portugal/Holanda , 2017, Audio Play, 22’
Obra inédita de Priscila Fernandes e produzida para a Solar, baseia-se na utopia medieval do País da Cocanha - um lugar de comida abundante, tempo ameno e onde o trabalho é desnecessário. A viagem para tal país é normalmente narrada como árdua, de vários anos e de enorme expectativa. Priscila Fernandes transpõe esse imaginário para os tempos de hoje: um parque numa cidade, de noite, e uma multidão de gente que circula em seu redor sem nunca encontrar entrada. A artista reveste cada uma das suas personagens com ambições e desejos distintos, desde os que procuram alimento e liberdade dentro do parque, até aqueles que o querem explorar, revelando assim como nascem as utopias e de que forma são instrumentalizadas.
"Todas as noites, uma multidão de gente caminha, marcha ou vagueia pelos limites que circunscrevem o parque. Seguem apenas pelos caminhos que traçam os limites do parque, acentuando continuamente o seu desenho e evidenciando os arbustos e árvores que o demarcam, seguindo apenas pelo piso firme entre a cidade e o parque.
É gente de todos os tipos e feitios, assim o sabe Armindo, que todas as noites toma nota dos que por lá passam. Monta o seu escritório na entrada norte vai sempre vestido a rigor, de fato e gravata, asseadinho,
e cabelo penteado a pente fino.
Embora muito tenha ouvido dizer que é dentro do parque que se encontra felicidade – a felicidade verdadeira – Armindo nunca sentiu vontade de lá entrar. Toda a vida foi funcionário público e está mais que bem conformado com a rígida rotina burocrática. O seu êxtase encontra-se ali mesmo, na entrada do parque, nos inventários que faz sobre a gente que por lá passa. É graças à minuciosa investigação de Armindo que chegam até nós relatos e peripécias de Jerónimo, ávido amante da preguiça; de Américo, um personagem que se peida a cada salto que dá; da pudica Doutora Clara e das gatunagens do José.
É gente de verdade, gente com corpos inteiros, corpos em si mesmos, corpos que se mantêm inteiros .”
Como toda a utopia, este parque baseado na Cocanha, reflete
a realidade atual em que vivemos, uma realidade instigada por
crises migratórias, crises económicas e políticas. Desta forma,
a artista propõe-se refletir acerca de como hipérboles folclóricas podem oferecer uma reflexão sobre as limitações da sociedade atual, assim como a imaginar outros possíveis futuros.